Fermentação Escura (Dark Fermentation)
Produção sustentável de hidrogênio a partir de resíduos orgânicos
1. O que é fermentação escura?
A fermentação escura (do inglês "dark fermentation") é um processo biológico que utiliza micro-organismos para converter matéria orgânica em hidrogênio e dióxido de carbono [5, 10]. Esse processo pode ser realizado com diferentes tipos de biomassa, como resíduos agrícolas, florestais e urbanos [9, 12]. O processo ocorre em condições anaeróbias (sem oxigênio), com alguns dos mesmos micro-organismos envolvidos no processo de produção de biogás. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), em seu documento "Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio" de 2021 [16], classifica este hidrogênio como "hidrogênio musgo" [5].
Os micro-organismos envolvidos no processo de fermentação escura são denominados hidrogenogênicos, que são capazes de produzir hidrogênio a partir da fermentação de açúcares e outros compostos orgânicos.
Outra forma de apresentar o conceito está didaticamente apresentado no trabalho de ALBUQUERQUE et al. (2024) [2] que destaca a fermentação escura como um processo biológico anaeróbio no qual micro-organismos, principalmente bactérias heterotróficas, convertem substratos orgânicos, como resíduos agrícolas, restos de alimentos ou biomassas em geral, em hidrogênio gasoso (H₂) sem a necessidade de luz. Esse método é considerado uma das estratégias mais eficientes e de menor custo para a produção de hidrogênio renovável, devido à sua simplicidade operacional, capacidade de utilizar uma ampla variedade de matérias-primas orgânicas e compatibilidade com a integração em biorefinarias [2].
Durante a fermentação escura, os micro-organismos decompõem compostos como monossacarídeos por meio de vias metabólicas, resultando na geração de hidrogênio, ácidos orgânicos, e outros produtos de valor agregado, sendo uma alternativa promissora para a transição rumo a uma economia de energia limpa e sustentável [2].
2. Vantagens do processo de fermentação escura
A biomassa utilizada como substrato é uma fonte renovável como resíduos agrícolas, florestais e urbanos, entre outros substratos orgânicos [5, 8]. Outro ponto relevante é a abundância e o baixo custo para acessar esses substratos, matéria-prima diversificada é amplamente disponível em todo o Brasil [5].
3. Desafios do processo de fermentação escura
A eficiência do processo ainda é baixa, exigindo grande quantidade de biomassa para produzir relativamente uma pequena produção de hidrogênio [1, 5].
O hidrogênio é uma fonte de energia para diferentes grupos de micro-organismos anaeróbio. A estabilidade da produção de hidrogênio pode ser afetada quando consumido por outros micro-organismos no próprio processo anaeróbio [5].
Sobre o custo de produção e a produtividade, quando comparado em com outros processos, a fermentação escura para produção de hidrogênio musgo ainda tem um custo de produção alto [5]. As perspectivas de pesquisa e inovação poderão mudar esse cenário em breve.
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4. Qual é a diferença entre hidrogênio musgo e hidrogênio verde?
O uso de cores para classificar o tipo de hidrogênio está diretamente relacionado com a rota tecnológica para produzi-lo.
Primeiramente vamos falar sobre o hidrogênio verde, produzido por eletrólise da água, processo que utiliza energia elétrica para separar o hidrogênio do oxigênio. Embora seja uma fonte limpa e sustentável, seu processo é caro e requer grandes quantidades de energia elétrica, obtida por fontes como parques eólicos ou sistemas fotovoltaicos. A sustentabilidade do hidrogênio verde depende diretamente da fonte de energia elétrica ser sustentável.
O hidrogênio musgo corresponde a classificação do hidrogênio (H2) obtido a partir de biomassa. Como citado anteriormente, a fonte de biomassa pode ser resíduos agrícolas, restos de alimentos, a fração orgânica dos resíduos municipais, a fração de carga orgânica dos efluentes industriais ou domésticos, ou seja, qualquer fonte de matéria orgânica que possa ser consumida pelos micro-organismos hidrogenogênicos.
5. Diferença do método clássico de digestão anaeróbia
A digestão anaeróbia clássica é um processo biológico complexo que ocorre em quatro fases principais: hidrólise, acidogênese, acetogênese e metanogênese. O produto final principal é o biogás, composto majoritariamente por metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2), com pequenas quantidades de outros gases. O objetivo primário da digestão anaeróbia clássica é a produção de metano para energia e a estabilização de resíduos orgânicos.
A fermentação escura, por outro lado, foca nas fases iniciais da digestão anaeróbia: a hidrólise e a acidogênese [3, 14]. O processo é otimizado para desviar o metabolismo microbiano da produção de metano (CH4) para a produção de hidrogênio (H2) e ácidos orgânicos voláteis (AGVs). Isso é conseguido através de condições operacionais específicas, como a supressão de micro-organismos metanogênicos (por exemplo, através de choque térmico, ajuste de pH ou uso de inibidores) e a seleção de culturas microbianas hidrogenogênicas. O produto gasoso resultante da fermentação escura é um biogás rico em hidrogênio, que alguns pesquisadores chamam de bio-hitano. A principal diferença reside, portanto, no produto final desejado e nas condições de processo para favorecer a via metabólica do hidrogênio em detrimento do metano.
 
6. Biogás rico em hidrogênio (bio-hitano): prós e contras
O biogás enriquecido com hidrogênio, ou bio-hitano, apresenta características distintas em comparação ao biogás convencional:
=>> Prós
- Alto valor energético: o hidrogênio possui um poder calorífico muito superior ao metano por unidade de massa, tornando o bio-hitano uma fonte de energia de alta densidade.
- Combustão limpa: a queima do hidrogênio produz apenas água, o que o torna um combustível extremamente limpo, sem emissão de gases de efeito estufa ou poluentes atmosféricos como NOx, se a temperatura de combustão for controlada.
- Versatilidade: o hidrogênio pode ser utilizado em células a combustível para gerar eletricidade com alta eficiência, ou diretamente em motores de combustão interna adaptados.
- Redução de CO2: ao desviar a rota do metano para o hidrogênio, há uma redução na produção de metano, um potente gás de efeito estufa.
=>> Contras
- Armazenamento e transporte: o hidrogênio é um gás muito leve e volátil, o que dificulta seu armazenamento e transporte em larga escala, exigindo tecnologias de compressão ou liquefação que são energeticamente intensivas e caras.
- Segurança: o hidrogênio é altamente inflamável e explosivo em certas concentrações com o ar, exigindo rigorosos protocolos de segurança.
- Eficiência do processo: a eficiência de conversão da biomassa em hidrogênio por fermentação escura ainda é um desafio, com rendimentos que precisam ser aprimorados para tornar o processo economicamente mais viável em comparação com outras rotas de produção de hidrogênio.
- Custos de produção: atualmente, os custos de produção do bio-hidrogênio por fermentação escura são relativamente altos, embora a utilização de resíduos de baixo custo como substrato possa mitigar parte desse problema.
7. Vantagem competitiva para novos projetos (plantas de biogás)
Para novos projetos e plantas de biogás, a inclusão da fermentação escura pode representar uma vantagem competitiva significativa, especialmente em um cenário de crescente demanda por hidrogênio como vetor energético limpo. As vantagens incluem:
- Diversificação de produtos: além do metano (se houver uma segunda fase de metanogênese), a planta pode produzir hidrogênio, um produto de maior valor agregado e com crescente mercado.
- Sustentabilidade reforçada: a produção de hidrogênio a partir de resíduos orgânicos alinha-se perfeitamente com os princípios da economia circular e da bioeconomia, conferindo um forte apelo ambiental e social ao projeto.
- Potencial de geração de receita: a venda de hidrogênio ou bio-hitano pode gerar novas fontes de receita, complementando ou superando a receita da venda de eletricidade ou biometano.
- Inovação e P&D: posiciona a planta na vanguarda da pesquisa e desenvolvimento em energias renováveis, atraindo investimentos e parcerias.
No entanto, a implementação requer um investimento inicial maior em pesquisa e desenvolvimento, além de tecnologias mais avançadas para otimização e separação do hidrogênio. A viabilidade econômica dependerá da escala do projeto, do tipo de substrato, dos custos operacionais e do preço de mercado do hidrogênio.
8. Perspectiva futura da digestão anaeróbia escura (dark)
A perspectiva futura da digestão anaeróbia dark é promissora, impulsionada pela busca global por energias limpas e soluções para o tratamento de resíduos. Espera-se que as pesquisas continuem a focar em:
- Aumento da eficiência e rendimento: novas cepas microbianas, otimização de reatores e condições operacionais, e pré-tratamentos mais eficazes da biomassa são áreas-chave para melhorar a produção de hidrogênio [1, 2, 10].
- Integração de processos: a combinação da fermentação escura com outras tecnologias, como a fotofermentação (que utiliza luz para produzir hidrogênio) ou células a combustível microbianas, pode criar sistemas híbridos mais eficientes e sustentáveis [7].
- Desenvolvimento de tecnologias de separação e purificação: aprimoramento das técnicas de separação do hidrogênio do dióxido de carbono e outros gases para obter um produto de alta pureza e reduzir custos.
- Viabilidade econômica e escalabilidade: redução dos custos de capital e operação para tornar a fermentação escura competitiva em escala industrial.
- Aplicações diversificadas: além da produção de hidrogênio, a fermentação escura também gera ácidos orgânicos voláteis, que podem ser utilizados como matéria-prima para a produção de bioplásticos, biocombustíveis e outros produtos químicos de alto valor agregado, agregando ainda mais valor ao processo [13].
A fermentação escura representa uma rota inovadora e sustentável para a produção de bio-hidrogênio a partir de resíduos orgânicos, com um potencial significativo para contribuir com a matriz energética do futuro e a economia circular. Os desafios ainda existem, mas o avanço contínuo da pesquisa e desenvolvimento sugere um futuro promissor para essa tecnologia.
9. Considerações Finais
Chegamos ao fim de nossa breve revisão para apresentar a fermentação escura. Um campo de pesquisa emergente com potencial transformador para a produção de energia limpa. Nesse artigo exploramos desde o conceito fundamental até os desafios e as notáveis vantagens que o hidrogênio musgo, o bio-hitano, oferece.
Discutimos as diferenças cruciais entre a fermentação escura e a digestão anaeróbia clássica, evidenciando como a otimização para a produção de hidrogênio abre novas perspectivas. Analisamos os prós e contras do biogás rico em hidrogênio e o impacto competitivo que essa tecnologia pode trazer para novos projetos de biogás.
Esperamos que este texto sirva como um guia didático para os leitores iniciantes, incentivando o aprofundamento neste tema vital para a sustentabilidade energética. As 16 referências bibliográficas citadas são um convite para a leitura sobre pesquisa e como podem ser um excelente ponto de partida para futuros trabalhos e estudos sobre a fermentação escura e a produção de bio-hitano.
Boa leitura!
 
10. Referências
1 AHMAD, Ashfaq et al. Biohydrogen production through dark fermentation: Recent trends and advances in transition to a circular bioeconomy. International Journal of Hydrogen Energy, v. 52, p. 335-357, 2024. https://doi.org/10.1016/j.ijhydene.2023.05.161
2 ALBUQUERQUE, Marcela Moreira et al. Biohydrogen produced via dark fermentation: a review. Methane, v. 3, n. 3, p. 500-532, 2024. https://doi.org/10.3390/methane3030029
3 ZAPPI, A.; HERNANDEZ, R.; HOLMES, W. E. A review of hydrogen production from anaerobic digestion. International Journal of Environmental Science and Technology, v. 18, n. 12, p. 4075-4090, 2021. https://doi.org/10.1007/s13762-020-03117-w
4 EL BARI, Hassan et al. Biohydrogen production from fermentation of organic waste, storage and applications. Cleaner Waste Systems, v. 3, p. 100043, 2022. https://doi.org/10.1016/j.clwas.2022.100043
5 MOCKAITIS, G. Você conhece o hidrogênio musgo? Grupo Interdisciplinar de Biotecnologia na Agricultura e no Meio Ambiente – GBMA, FEAGRI, Unicamp. Campinas – SP, 2025. https://www.feagri.unicamp.br/gbma/component/content/article/voce-conhece-o-hidrogenio-musgo?catid=9&Itemid=409
6 SÁ, Lívian R.; CAMMAROTA, Magali C.; FERREIRA-LEITÃO, Viridiana S. Hydrogen production by anaerobic fermentation-general aspects and possibility of using brazilian agro-industrial wastes. Química Nova, v. 37, p. 857-867, 2014. https://doi.org/10.5935/0100-4042.20140138
7 PATEL, Sanjay KS; KALIA, Vipin C.; LEE, Jung-Kul. Integration of biogas derived from dark fermentation and anaerobic digestion of biowaste to enhance methanol production by methanotrophs. Bioresource Technology, v. 369, p. 128427, 2023. https://doi.org/10.1016/j.biortech.2022.128427
8 YOU, Siming. 4 - Waste-to-biohydrogen. In: Waste-to-resource system design for low-carbon circular economy. Elsevier, 2022. Pages 47-75. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-822681-0.00008-6
9 ANAND, Avinash et al. Biohydrogen production from microbial fermentation of organic wastes. In: Emerging Biofuels, p. 27-52, 2024. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-99547-4.00011-3
10 BALACHANDAR, G.; KHANNA, Namita; DAS, Debabrata. Biohydrogen production from organic wastes by dark fermentation (Chapter 6). In: Biohydrogen. Elsevier, 2013. p. 103-144. https://doi.org/10.1016/B978-0-444-59555-3.00006-4
11 WANG, Wei; LIU, Shengyong; LI, Yameng. Modeling of biohydrogen production by dark fermentation (Chapter 1). In: Waste to Renewable Biohydrogen. Academic Press, 2023. p. 1-14. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-821675-0.00009-8
12 MARAKANA, Parth et al. Biohydrogen production from dark fermentation of lignocellulosic biomass (Chapter 7). In: Bio Refinery of Wastewater Treatment. Elsevier, 2025. p. 93-112. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-95670-3.00002-2
13 BASTIDAS-OYANEDEL, Juan-Rodrigo; SCHMIDT, Jens Ejbye. Biorefinery. Integrated Sustainable Processes for Biomass Conversion to Biomaterials, Biofuels, and Fertilizers. Springer Nature Switzerland AG, Springer Cham. 2019. ISBN 978-3-030-10960-8. p. 763 https://doi.org/10.1007/978-3-030-10961-5
14 ŁUKAJTIS, Rafał et al. Hydrogen production from biomass using dark fermentation. Renewable and Sustainable Energy Reviews, v. 91, p. 665-694, 2018. https://doi.org/10.1016/j.rser.2018.04.043
15 SILLERO, Leonor et al. A bibliometric analysis of the hydrogen production from dark fermentation. International Journal of Hydrogen Energy, v. 47, n. 64, p. 27397-27420, 2022. https://doi.org/10.1016/j.ijhydene.2022.06.083
16 DE PESQUISA ENERGÉTICA, Empresa. Bases para a consolidação da estratégia brasileira do hidrogênio. Nota Técnica No EPE-DEA-NT-003/2021. Brasília: EPE, 2021. https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/nota-tecnica-bases-para-a-consolidacao-da-estrategia-brasileira-do-hidrogenio
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